Santo Agostinho diversas vezes em seus escritos recorda-se do Monte Olimpo. Montanha tão alta que lá não se sente nem ventos, nem nuvens, nem chuvas. Nem mesmo as aves podem lá pousar, porque fica tão alto, que o ar ali é muito puro e subtil, e por isso não se podem lá produzir e sustentar as nuvens que precisam de ar mais denso.
Por esta mesma razão, nem as aves nem os homens podem lá viver, porque, sendo o ar tão rarefeito e leve, não é suficiente para poder respirar. Alguns que conseguiram subir tiveram de levar consigo esponjas molhadas para que, pondo-as no nariz, pudessem adensar o ar, e respirar melhor. Estes alpinistas lá no cimo do monte escreviam certas letras no pó, e no ano seguinte encontravam-nas tão inteiras e bem formadas como as tinham deixado, pois lá não chegavam nem os ventos nem as chuvas.
Pois bem, este é o estado de perfeição a que subiram e chegaram os que possuem uma inteira conformidade com a vontade de Deus. Subiram tão alto e alcançaram tamanha paz, que não há nuvem, nem ventos, nem chuvas que lá cheguem, nem aves de rapina que salteiam nem roubam a paz e alegria de seu coração, são estes os Bem-aventurados de quem Nosso Senhor fala no Evangelho desta Solenidade de Todos os Santos.
Na Solenidade de Todos os Santos a Igreja celebra todos aqueles que já se encontram na plena posse da visão beatífica, inclusive os não canonizados. Sim, alegremo-nos, porque santos são também — no sentido lato do termo — todos os que fazem parte do Corpo Místico de Cristo: não só os que conquistaram a glória celeste, como também os que satisfazem a pena temporal no Purgatório, e os que, ainda na Terra de exílio, vivem na graça de Deus.
O contraste entre a Antiga e a Nova Lei
Em primeiro lugar, apreciemos o contraste desta cena do Sermão da Montanha com outro importante discurso da História Sagrada: a promulgação da Antiga Lei, no Monte Sinai (cf. Ex 19—23).
No Sinai, foi dado a Moisés um código de leis, com severos castigos para quem o transgredisse; na montanha, Nosso Senhor mostra, com misericórdia sem limites, quais os prêmios e as maravilhas concedidas por Deus a quem pratica a virtude e cumpre a Lei. No Sinai, Moisés representa a Lei, servindo de exemplo por seu zelo em cumprir essa mesma Lei; na montanha, Jesus Cristo é o modelo perfeito da lei da bondade.
Nessa perspectiva de bondade, Jesus proclama as Bem-aventuranças, mostrando a que alturas é capaz de se elevar uma alma pelo florescimento dos dons do Espírito Santo, produzindo atos de virtude heroica. Ser santo, então, significa ser um bem-aventurado no tempo para depois sê-lo na eternidade.
A filiação divina nos confere uma qualidade
Em que consiste, pois, essa bem-aventurança? Na segunda leitura (I Jo 3, 1-3) São João nos dá a resposta: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus. E nós realmente o somos” (I Jo 3, 1a). Na verdade, por ocasião do Batismo, embora a natureza humana continue a mesma, com inteligência, vontade e sensibilidade, acrescenta-se em nós uma qualidade: a participação na própria natureza divina, que nos assume por completo. A graça, explica São Boaventura, “é um dom que purifica, ilumina e aperfeiçoa a alma; que a vivifica, a reforma e a consolida; que a eleva, a assimila e a une a Deus, tornando-a aceitável; pelo que semelhante dom justamente chama-se graça, pois nos faz gratos, isto é, graça gratificante”.
Sendo um bem do espírito, não pode ser vista com os olhos materiais, pois estes captam só o que é sensível, mas comprovamos, isto sim, seus efeitos. Santa Catarina de Sena, a quem Nosso Senhor concedera a graça de contemplar o estado das almas, chegou a afirmar a seu confessor: “Meu pai, se vísseis o fascínio de uma alma racional, não duvido que daríeis cem vezes a vida pela sua salvação, porque neste mundo nada há que se lhe possa igualar em beleza”.
Imaginemos um vitral esplendoroso, com uma perfeita combinação de cores, fabricado com vidro da melhor qualidade, contendo até ouro na sua composição. Uma vez posto na janela, se não é iluminado, que valor terá peça tão espetacular? Entretanto, a partir do momento em que os raios de luz sobre ele incidem, brilhará com extraordinários matizes, desdobrando-se em mil reflexos multicoloridos.
Da mesma forma como a luz ilumina o vitral, também a graça confere nova qualidade à alma humana, que é, por assim dizer, submersa na natureza divina.
Uma semente da glória futura
Filhos de Deus… “nós o somos! Se o mundo não nos conhece é porque não conheceu o Pai. Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos” (I Jo 3, 1b-2a). De fato, enquanto permanecemos neste mundo, em estado de prova, temos a graça santificante, recebida no Batismo, e as graças atuais, que Deus derrama sobre nós ao longo da nossa existência. Todavia, estamos apenas no começo do caminho, pois, só quando contemplarmos a Deus face a face, esta graça se transformará em glória e chegaremos ao “estado de homem feito, a estatura própria da maturidade de Cristo” (Ef 4, 13).
A ideia da felicidade eterna
Esta é a felicidade absoluta da qual os Santos, já gozam em plenitude na eternidade e com a qual nenhuma consolação desta vida é comparável. Nossa ideia a propósito da felicidade é tão humana, que julgamos, muitas vezes, possuí-la em grau máximo ao obter algo que muito desejamos. A mera inteligência do homem não alcança a compreensão da felicidade do Céu, pois em relação a Deus somos como formigas que, andando pela terra, levantassem a cabeça para olhar o voo de uma águia no céu. A diferença entre uma formiga e uma águia é ridícula perto da infinitude existente entre a razão humana e a inteligência divina. E ainda que, dotados de uma capacidade incomum, passássemos trezentos bilhões de anos estudando, nosso verbo continuaria falho e não encontraríamos termos para nos expressarmos devidamente a respeito de Deus.
Um empréstimo da inteligência divina
Pois bem, em seu infinito amor, Deus quis dar às criaturas inteligentes, Anjos e homens, um empréstimo de sua luz intelectual, o lumen gloriæ. O eminente dominicano padre Santiago Ramírez define o lumen gloriæcomo “um hábito intelectual operativo, infuso per se, pelo qual o entendimento criado se faz deiforme e torna-se imediatamente disposto à união inteligível com a própria essência divina, e se torna capaz de realizar o ato da visão beatífica”.
Esse “fazer-se deiforme” significa que quem entra na bem-aventurança e contempla a Deus face a face se torna semelhante a Ele, como afirma São João na continuação de sua Epístola: “Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (I Jo 3, 2b). Só no Céu veremos a Nosso Senhor Jesus Cristo de fato, uma vez que enquanto viveu na Terra ninguém O viu tal qual Ele é.
Sigamos o exemplo daqueles que nos precederam na graça e nos esperam na glória!
O homem, ainda quando privado da graça, tem uma apetência de infinito que não descansa enquanto não for saciada pela união com Deus. É o que revela Santo Agostinho, em suas Confissões: “E eis que Tu estavas dentro de mim e eu fora, e fora Te procurava; e, disforme como era, lançava-me sobre as coisas belas que criaste. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que, se não estivessem em Ti, não existiriam”. Essa felicidade imensa e indescritível, para a qual todos nós somos criados, só a atingiremos seguindo os passos daqueles que nos precederam com o sinal da Fé e que já gozam dela, por sua fidelidade a tal chamado.
Peçamos que essa bem-aventurança eterna seja também para nós um privilégio, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, das lágrimas de Nossa Senhora e da intercessão de todos os Santos que hoje comemoramos, a fim de um dia nos encontrarmos em sua companhia no Céu. Enquanto lá não chegarmos, podemos nos relacionar com essa enorme plêiade de irmãos celestes, membros do mesmo Corpo, por um canal direto muito mais eficiente do que qualquer meio de comunicação moderno: a oração, o amor a Deus e o amor a eles enquanto unidos a Deus. Tenhamos a certeza de que, do alto, eles nos olham com benevolência, rogam por nós e nos protegem.
Obras consultadas:
DIAS, João S. Clá, O Inédito sobre os Evangelhos Vol VII, Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano, 2013
RODRIGUES, Pe. Afonso, Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs, Tip da União Gráfica, Lisboa, 1932
Fonte: Arautos do Evangelho
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