O culto oito vezes secular à “Santíssima e Vera Cruz” de Caravaca lembra-nos que o Sagrado Madeiro não é símbolo de morte e de derrota, mas sim anúncio de salvação e caminho seguro para a glória celeste.

22Cruz_de_caravaca.jpgCorria o ano de 1232. A Península Ibérica encontrava-se ainda em plena Reconquista, dividida em vários reinos. Sancho II governava em Portugal; Jaime I, em Aragão; e Fernando III, o Rei Santo, em Leão e Castela.

Do lado muçulmano, o declínio da dinastia Almóada fora aproveitado por Ibn-Hud para se apossar de uma ampla região do sul da Espanha e se fazer proclamar emir em Múrcia. A cidade de Valência, entretanto, era ainda governada por Ceyt Abu-Ceyt, descendente daquela dinastia. Sob o domínio deste último encontrava-se a fortaleza de Caravaca, em cujo alcácer, segundo a tradição histórica local, deu-se no dia 3 de maio desse ano, “um acontecimento maravilhoso e único”.1

Acompanhemos o relato que dele nos fazem as antigas crônicas.2

Dando ocupação aos prisioneiros

Encontrando-se naquela fortaleza, e visando tirar melhor proveito dos prisioneiros que lá havia, o governador Abu-Ceyt começou a interrogá- los sobre a respectiva profissão e ocupá-los segundo as respectivas aptidões. Quando chegou a vez do padre Ginés Pérez Chirinos, o governador perguntou-lhe:

– E tu, que sabes fazer?

– Eu sei celebrar Missa.

– O que significa isso? – replicou Abu-Ceyt.

Padre Ginés explicou-lhe ser o mais alto e principal encargo do sacerdote cristão celebrar a Eucaristia, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo na Última Ceia. Durante a mesma, esclareceu, o pão e o vinho passam a ser o Corpo e o Sangue do Deus verdadeiro.

– Não acredito! – replicou-lhe incrédulo. Mostra-me como isso acontece.

– Se me deres quanto preciso para celebrar Missa, eu o farei – redarguiu o sacerdote.

Abu-Ceyt aquiesceu. Feita a lista dos paramentos e alfaias litúrgicas necessários, o alcaide mandou logo providenciá-los.

Milagrosa aparição da Cruz

No dia seguinte, o padre Chirinos rezou bem de manhã seu breviário. Logo após, dirigiu-se ao salão principal da fortaleza, onde fez cuidadosamente todos os preparativos para a Eucaristia e vestiu os paramentos.

Já seguia rumo ao improvisado altar para dar início à celebração quando percebeu a ausência do crucifixo. Sem conseguir explicar como pudera esquecê-lo, disse consternado ao governador:

– Senhor, falta-me uma das coisas mais importantes para celebrar a Missa: a Cruz.

– Mas… não é isso que está em cima da mesa? – perguntou o alcaide apontando para o altar.

O sacerdote voltou-se e viu, admirado, uma Cruz patriarcal de 17cm de altura com duas hastes transversais, de 7 e 10cm. Transido de devoção, ajoelhou-se, osculou-a e deu início à Santa Missa, terminada a qual, Abu-Ceyt pediu para ser batizado.

Oito séculos de devoção

A Cruz de Caravaca é um lignum crucis – fragmento da verdadeira Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo – recolhido no interior de um belo relicário. Segundo antiga tradição, este era usado como cruz peitoral pelo Patriarca de Jerusalém, Dom Roberto, empossado como Bispo da Cidade Santa no ano de 1099. Daí o seu singular formato, com duas hastes transversais, símbolo do poder patriarcal. Sejam quais forem as circunstâncias em que ela chegou a Caravaca, não se pode duvidar de sua presença na cidade em pleno século XIII. Já no ano de 1285 sua silhueta é representada no escudo da municipalidade, e datam da mesma época os primeiros relatos orais do miraculoso aparecimento.

Desde os primórdios, a devoção à “Santíssima e Vera Cruz” de Caravaca difundiu-se por todo o mundo cristão. Da Espanha medieval – onde logo adquire fama de milagrosa protetora na tormentosa vida fronteiriça- passou para os outros países europeus e estendeu-se depois às nações americanas.

A partir de 1392 – quando Clemente VII concede as primeiras indulgências -, os Papas têm outorgado regularmente privilégios aos peregrinos que acorram a venerar a sagrada relíquia. Em 1736, é-lhe reconhecido pela Igreja o culto de latria.

Ao longo desses quase oito séculos, desenvolveu-se também um rico e variado ritual em torno dela: bênção das flores e dos campos, uma peculiar bênção da água e do vinho, além de uma espécie de romaria durante a qual a sagrada relíquia visita as casas dos enfermos impedidos de comparecer à igreja.

Em fins do século XV, a pequena capela do alcácer de Caravaca foi acrescida de uma nave de maiores proporções. E, em 1617, iniciou-se a construção da atual Basílica-Santuário.

Também o relicário que contém o lignum crucis tem passado por sucessivas reformas, sendo o atual uma maravilhosa obra de ourivesaria, ornada com pedras preciosas.

Uma mensagem atual

Setecentos e cinquenta anos após a milagrosa aparição, o culto à “Santíssima e Vera Cruz” recebeu um novo impulso por parte do Papa João Paulo II. Em 1981, ele concedeu à Basílica-Santuário um ano jubilar para comemorar esse aniversário. Em 1996, proclamou novo Ano Santo e, dois anos depois, outorgou um jubileu in perpetuum, de sete em sete anos, a começar em 2003.

O primeiro desses períodos de graça foi precedido por uma Missa solene na basílica, celebrada pelo Cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1º de dezembro de 2002, primeiro domingo do Advento. Durante a homilia, ele fez uma esplêndida interpretação teológica do antiquíssimo relato, tomando por base o exemplo do padre Ginés Pérez Chirinos, para recordar a grandeza da vocação sacerdotal e lembrar que é o próprio Cristo quem toma possessão do presbítero, atuando por meio dele e “pronunciando por boca do sacerdote as palavras santas que transformam as coisas terrenas num mistério divino”.

Após estender-se nas relações entre a Eucaristia e a Cruz, concluiu o atual Papa com esta tocante exortação: “A cruz, à qual nos remete a Santa Eucaristia e cujo sinal exterior é a Santa Cruz de Caravaca, é a força santa com que Deus bate à porta dos nossos corações e nos acorda. Ver a Cristo crucificado significa vigiar e, em consequência, viver com retidão. Senhor, abri o Céu! Fazei- -nos vigilantes para que Vos reconheçamos, oculto no meio de nós”.

A frase adotada como lema para o Ano Santo 2010, que agora celebramos – Ó Cruz, única esperança! -, foi escrita pelo próprio Cardeal Ratzinger, por ocasião dessa sua visita ao Santuário. Ela nos recorda que a Cruz é nossa esperança no presente e o será em todos os tempos. A Cruz não é um símbolo de morte e de derrota; ao contrário, é anúncio de salvação e caminho seguro para chegar à glória celeste.


Por Padre Carlos Toneli, EP

(in “Revista Arautos do Evangelho”, Set/2010, n. 105, p. 38-39)

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1 – Homilia pronunciada pelo Cardeal Joseph Ratzinger, na Basílica-Santuário da Santíssima e Vera Cruz de Caravaca (1/12/2002). Texto íntegro em http://www.diocesisdeteruel. org/pdf y otros/Adviento 2007/HOMILIAS/Homilía en el SantuarioCaravaca.pdf.

2 – Uma interessante análise historiográfica dos relatos do milagre é feito em BALLESTER LORCA, Pedro. La Cruz de Caravaca – Historia, rito y tradición. 11.ed. Caravaca de la Cruz: Real e Ilustre Cofradía de la Cruz, 2006.


Fonte: Conteúdo publicado em gaudiumpress.org